Aventuras de heróis, acontecimentos políticos, histórias de amor e de humor… tudo isso cabe nas páginas dos cordéis. Para preservar e divulgar a riqueza dessa literatura, a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) criou o site Cordel – Literatura Popular em Verso, com a obra de 21 cordelistas que integram a coleção da instituição, que é vinculada ao Ministério da Cultura (MinC). Estão disponíveis para consulta 2.340 folhetos digitalizados, com suas versões originais e variantes.
De acordo com a chefe do serviço de biblioteca da FCRB, Dilza Ramos Bastos, o acervo Literatura Popular em Verso completo conta com quase 10 mil folhetos, mas estão disponíveis no site somente aqueles em domínio público ou que tiveram autorização para divulgação dos autores ou de suas famílias.
“Além da digitalização, fizemos também a restauração de alguns folhetos. O objetivo é preservar os cordéis e ampliar o acesso a eles. Só em 2016, foram 35.313 acessos ao acervo digital”, conta Dilza. “Só permitimos o acesso físico aos folhetos se for realmente necessário, para pesquisadores que estejam estudando a cor dos folhetos, a encadernação… O cordel é uma literatura que surge no âmbito popular e reflete muito da cultura oral e seu tempo, os fatos sociais, os fatos políticos, acontecimentos históricos… É um tipo de literatura que, para a pesquisa histórica, é muito importante”, ressalta.
O site é fruto de um projeto inicial realizado pela professora Ivone da Silva Ramos Maya. Segundo ela, desde a década de 50, pesquisadores da Casa de Rui Barbosa faziam estudos sobre a literatura popular nordestina, no intuito de repertoriar o acervo. Em 1979, Ivone trabalhou como consultora na instituição, mapeando os cordéis. Em 1987, após fazer um doutorado na França, ela voltou para a FCRB, ampliando a indexação do material. Em 2001, a professora tomou conhecimento de um material inédito que havia pertencido a um funcionário da FRCB, Sebastião Nunes Batista, filho do poeta popular Francisco Chagas Batista.
“A Casa de Rui Barbosa recebeu caixas que pertenciam a Sebastião e continham cordéis de Leandro Gomes de Barros, considerado um autor canônico. Ele é o primeiro a assinar os cordéis. O poeta é reconhecido como o primeiro sem segundo, aquele que não se podia vencer no cordel. É um reconhecimento já em vida. O material veio para mim, começamos a fazer uma pesquisa imensa, que durou cinco anos, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Eu me senti muito honrada por fazer esse trabalho. Ele me exigiu minúcia e foi um grande desafio. Atribuo a esse trabalho um valor inestimável para preservação do patrimônio, tanto que pretendo encaminhar uma proposta para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), para que o cordel seja tombado como patrimônio da humanidade”, ressalta.
Com o sucesso da elaboração do site com a obra de Leandro Gomes de Barros, o projeto foi ampliado em um segundo momento. Com patrocínio da Petrobras, expandiu-se o escopo do site, incluindo-se folhetos e biografias de 20 outros poetas e bibliografia sobre cordel disponível no acervo da FCRB, com 400 referências, dentre artigos, livros, recortes, teses e dissertações.
O baiano Varneci Nascimento, que trabalha com cordéis há 16 anos, reconhece a importância do site Cordel – Literatura Popular em Verso. “Ele preserva a memória do cordel e mantém viva nossa arte. Sou coordenador editorial da editora Luzeiro, que publica cordéis, e, se não fosse a Casa de Rui Barbosa, não teríamos conseguido reeditar uma obra de Antonio Teodoro dos Santos. A editora comprou os direitos, mas não tinha a obra”, conta o poeta.
A arte de encantar que se renova
A literatura de cordel se adapta aos novos tempos sem perder a magia dos versos. Telma Queiroz, que coordena o coletivo Cordel na Paulicéia, com 16 cordelistas, conta que os cordéis extrapolam os folhetos e ganham novos formatos, em livros, CDs e outros espaços.
“Hoje, os cordéis ganham mais espaço nas escolas também. Quase diariamente tem alguém dando palestra sobre cordel nas escolas. Isso é muito dinâmico, está preparando a nova geração. Há um interesse dos professores e dos alunos. O cordel é um instrumento lúdico de educação”, avalia Telma.
Costa Senna começou a trabalhar com cordéis em 1979, descobriu o filão das apresentações nas escolas e nunca mais parou. Depois de mais de 100 eventos em instituições de ensino em Fortaleza, sua terra natal, ele veio para São Paulo, onde se apresentava em troca da venda dos folhetos.
“Consegui construir minha vida toda em cima da literatura de cordel. Recebi o título de cidadão paulistano. Eu me apresento em feiras de livros e, em 2014, estive na Feira de Livros de Buenos Aires. A literatura de cordel existe em vários formatos e temas. Se o poeta faz literatura de cordel direcionada para a sala de aula, é mais fácil para passar o conteúdo. A metrificação exata ajuda na assimilação. Além do mais, podem trabalhar pedindo para que as crianças ilustrem uma estrofe ou cantem, já que não é preciso muitos instrumentos. É um santo remédio para quem é gago, e quebra a timidez do leitor e do ouvinte”, diz o cordelista.
Cleusa Santo é outra apaixonada pelos cordéis. Por conta do interesse pelos folhetos, voltou a estudar e acaba de se formar em Letras. Dedicada aos cordéis com temas infantis, foi uma das ganhadoras do Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel 2010 – Edição Patativa do Assaré, com o cordel Rino, o rato que roeu a roupa do rei do Roma.
“Hoje, eu dou oficinas de cordel e sempre digo: ‘O cordel só tem dois públicos: aquele que o ama e aquele que ainda não o conhece’. Acho bacana ter um site como o da Casa de Rui Barbosa. A gente ouve que o cordel está morrendo, mas isso é mentira. O cordel nunca morreu. Ele se adapta a tudo, e permanece o que sempre foi: poesia”, frisa Cleusa.
Para aqueles que desejam começar na arte do cordel, Varneci Nascimento aconselha que leiam os grandes poetas. “Tem que beber da fonte, conhecer Leandro Gomes de Barros, Manoel de Almeida, José Camilo… Ler, conhecer, pesquisar. O cordel deve ser algo difícil de fazer, porém fácil de entender. É um dos gêneros literários mais difíceis, porque exige rima, ritmo, métrica e bom jogo de palavras. Ninguém venha fazer o leitor de bobo. Escrever é a arte de encantar”, completa.
Por: Minc