Rádios AM em xeque

No último mês de março, a Rádio Cultura AM, de São Paulo (SP), passou por um corte de gastos que resultou na demissão de funcionários e na redução drástica da programação ao vivo da emissora. Em defesa de uma reavaliação da decisão da Fundação Padre Anchieta*, além de uma reflexão sobre a importância do rádio como meio de difusão da cultura, um grupo de músicos, artistas, produtores e comunicadores deu início a um movimento, o Somos Rádio.

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“De 1995 para cá, o que se vê é o desmonte gradativo de uma rádio que há muito merecia ser transmitida em FM, e o estrangulamento do espaço mais do que necessário para o que se produz na música brasileira. Este é o ponto principal. O espaço da música e dos músicos brasileiros cada vez mais exíguo. Há uma imensa e valiosa produção musical, principalmente em termos instrumentais, que fica sem ter onde ser difundida”, afirma Maria Luiza Kfouri, diretora da rádio Cultura AM entre 1989 e 1995.

Naquele momento, ela diz, a emissora já funcionava com o mínimo necessário e conseguia, ainda assim, produzir programas e séries de altíssimo valor, como “Noel Rosa, as Histórias e os sons de uma época”, “Vinícius, Poesia, Música e Paixão”, “Elis. Instrumento: Voz. Uma travessia em 6 tempos” e “Caymmi por ele mesmo”.

Nos últimos anos, programas diários importantes surgiram na grade da Cultura AM, como o Cultura Livre e o Radar Cultura, que recebiam artistas e divulgavam a nova música brasileira com um olhar mais conectado às novas mídias. A partir de agora, o Cultura Livre passa a ser gravado e a entrar no ar apenas uma vez por semana, e o Radar Cultura sai do ar definitivamente. Além disso, a programação musical passa a ser um “vitrolão”, sem locução e sem informação sobre o que está sendo tocado.

Para Maria Luiza, a questão não é financeira: “A rádio AM, pelo menos desde 1989, sempre trabalhou na corda bamba, com um número pequeno de funcionários e com uma produção muito acima da capacidade numérica, na base do esforço, da militância mesmo em nome de uma coisa maior, a música brasileira. Acho que é mais uma questão de desapreço, de um ‘pouco se me dá’. Estamos assistindo a cortes em todas as instituições culturais do Estado de São Paulo, independentemente da relevância que elas tenham.”

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Doutor em Ciência da Comunicação e professor do curso de Educomunicação na Universidade de São Paulo (USP), Marciel Consani acredita que o êxito do rádio, no Brasil, se deu muito mais por seus vínculos comerciais com a propaganda e a indústria fonográfica do que por seus objetivos culturais e educativos. “Basta percorrer o dial e comparar a percentagem de programas patrocinados musicais, comerciais e de entretenimento puro, com a percentagem de música clássica, MPB, jazz etc, documentários especiais e similares.”

Ele lembra de tentativas pontuais de transformar o rádio numa mídia educativa de alcance nacional, como o projeto de Rádio Clube de Roquete Pinto nos anos 1920-1930, mas que não atingiu seus objetivos. “Constatamos assim que é difícil ressaltar o papel do rádio brasileiro como veículo, por excelência, de divulgação de educação e cultura, pois são raras as rádios educativas (e seu alcance, restrito) e porque a cultura veiculada nos dias de hoje (nada a ver com a Era de Ouro dos cantores do Rádio, nos anos 1930) é aquele pastiche pop de matriz norte-americana que domina o FM”, afirma o professor.

Por outro lado, Consani lembra que a força do rádio no Brasil ainda está relacionada ao radiojornalismo e à prestação de serviços, o que para ele é o verdadeiro “território de disputa” entre o rádio e a internet. “Para quem está se deslocando no trânsito ou ligou logo cedo para saber as notícias, é mais fácil se inteirar dos últimos acontecimentos pelo rádio do que pelos sites jornalísticos, que dependem ainda das mesmas agências que alimentam as mídias audiovisuais e impressas”, diz, ressaltando que ainda é muito maior o número de residências brasileiras que contam com aparelhos de rádio (incluindo nos telefones celulares) do que as que possuem facilidades de conexão web.

Modernização – Com o objetivo de melhorar a qualidade do sinal das estações AM, além de torná-las acessíveis em dispositivos como celulares e tablets, o governo federal definiu, no final de 2013, que as emissoras AM poderiam pedir a migração para FM. O prazo para os pedidos se encerrou em novembro de 2014, um ano após a assinatura do Decreto 8139.

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De acordo com dados do Ministério das Comunicações, do total de 1.781 entidades com outorgas de Ondas Médias (AM), 1.395 apresentaram o pedido de migração, o que corresponde a mais 78% do total. “Os processos estão em análise e o andamento depende de duas situações: 1) validação pelo Tribunal de Contas da União da metodologia de cálculo do preço da outorga; e 2) replanejamento de canais a ser concluído pela Anatel, com os respectivos estudos de viabilidade”, informou a assessoria de imprensa do ministério.

O serviço de radiodifusão sonora em ondas médias (AM) de caráter local será extinto. Ou seja: as entidades que não se adaptarem/reenquadrarem, não terão suas outorgas renovadas, vencido o prazo contratual.

No entanto, o processo não é simples. “Para se tornar uma FM, uma rádio vai gastar cerca de R$ 85 mil para trocar todo o seu parque técnico. Além disso, a emissora vai precisar pagar pela nova concessão de FM”, aponta o jornalista e radialista Marcos Lauro, e completa que as novas FMs deverão ser alocadas entre 76 e 88 Mhz, antes da faixa que é coberta por qualquer receptor FM vendido no mercado. “Os novos receptores serão baratos e acessíveis tanto quanto os que são vendidos hoje? Que rádio vai querer migrar para uma frequência que não se ouve ainda?”, questiona.

A Associação das Emissoras de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (Aesp) está fazendo um levantamento para ter uma previsão do custo de migração. E no início de março, a direção da associação se reuniu com o governo do Estado de São Paulo para conversar sobre a criação de uma linha de crédito especial para as emissoras AM que queiram migrar para FM. Com o valor aproximado, os radiodifusores terão acesso também às regras do financiamento. “Com isso, poderemos conhecer mais detalhes do montante a ser disponibilizado, tais como: taxa de juros, prazo máximo de financiamento e outros detalhes que o Programa Invest São Paulo irá anunciar”, afirmou o líder do comitê técnico da Aesp, Eduardo Cappia.

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Em nível nacional, Luis Roberto Antonik, diretor geral da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), afirma que é prioridade zero da instituição sensibilizar o Ministério das Comunicações sobre a importância de definir o quanto antes os valores para migração. Também estão negociando um nova linha de financiamento com o Banco do Brasil. “Existe uma diferença de preço da outorga da FM em relação à AM. Ter uma emissora em FM é mais caro. Por isso não se pode simplesmente migrar sem cobrar por isso. Além disso, tecnicamente as rádios AM são diferentes das FM, portanto será necessário gastar com novos transmissores, antenas, cabos, conectores, mesa… é montar uma rádio nova”, admite.

Servindo bem para servir sempre – Segundo ele, a parte mais difícil já foi feita: a conclusão de que tecnicamente a mudança é viável. Mas a falta de definição dos custos para isso atrasa o processo. “Muitas rádios podem fechar”, alerta Antonik, que acredita que o modelo de programação das emissoras AM faz com que elas sejam ainda mais importantes do que as FM e, inclusive, sejam copiadas. “A AM foi conquistando o seu espaço, porque as pessoas gostam de rádio de serviço, de saber o que está acontecendo no bairro. Para escutar música existem milhões de opções, mas a informação local só o rádio vai dar. E esse tipo de programação de serviço local, que está na rua, cobrindo o trânsito, o cotidiano dos bairros, é característico da AM.”

O professor Marciel Consani acredita que, se há algo a resgatar hoje é o sonho de uma rádio participativa e aberta aos cidadãos, predisposta a redescobrir e a disseminar a cultura brasileira e funcionando, também, como plataforma educativa. “A grande vantagem, nos dias de hoje, é que este projeto renovado pode se apoiar nas tecnologias digitais, assumindo a forma de podcasts e web rádios, sem as restrições técnicas previstas numa legislação arcaica e sem a necessidade de lutar numa guerra perdida contra os grandes grupos midiáticos”, defende.

Para a jornalista, pesquisadora e também professora universitária Magaly Prado, autora do livro “História do Rádio no Brasil” (Editora Da Boa Safra. 2012), os avanços tecnológicos permitiram uma quebra de fronteiras e uma renovação do rádio. “Os aparelhos celulares permitem ouvir programas radiofônicos diversos, de qualquer lugar do planeta. O rádio ganha novo fôlego, se recria, consegue uma participação mais consistente dos ouvintes – com chat aberto, redes sociais etc -, fornece informação complementar no site. Com isso tudo, a função social do rádio só cresce”, afirma.

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Para ela, há um tripé que sustenta o rádio hoje e que deve fazer com que ele ainda cresça: internet, portabilidade do celular e trânsito maior. “O rádio bem feito, no carro, tem audiência crescente”, indica. E é taxativa: “Esse negócio de que o rádio vai morrer é bobagem. Rádio nunca deixou de ser bom negócio. Mas o rádio AM pode ser que morra, porque as pessoas pararam no tempo, a programação é ultrapassada, o sinal é ruim… Quem escuta AM tem sido mais pela internet.”

Emanuel Bomfim, jornalista e radialista, concorda: “Sabemos que o AM nada mais vale, para ninguém”, afirma. Nesse sentido, considera que o debate a ser promovido por quem defende a manutenção de rádios como a Cultura AM é complexo e deve ser ampliado. “Como ouvinte, acho péssimo o que vem se desenhando. Mas a questão é saber qual é a disposição do governo em bancar a rádio, tal como ela deve ser. E se a Fundação Padre Anchieta é boa o suficiente para cuidar disso. Não gosto do modelo público que não exige resultados. A Cultura Brasil tem tudo para ser uma rádio com assinantes, como é a NPR nos EUA. Mas é um modelo que não existe no Brasil.”